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‘Unha e Carne’ é uma comédia romântica que, em 2002, esteve em cartaz no Rio de Janeiro e em tournée pelo Brasil. A peça fala dos sentimentos e contradições de duas amigas de forte personalidade, mas de temperamentos bem diferentes: Isadora é cantora de night club, extrovertida, sensual e apaixonada. Maria é advogada, séria, decidida e responsável. Elas estão brigadas e não se falam há tempos. O reencontro acontece de modo inesperado em virtude de Isadora ser a portadora de uma notícia que irá mudar definitivamente a vida de Maria.

Já de início, a conversa é franca e, portanto, difícil e espinhosa. Os ânimos se exaltam com facilidade e a trama se desenvolve com revelações e cobranças do passado que desvendam a história dessa conflituosa amizade. A notícia bombástica, que deveria ser dada com extremo cuidado, acaba saindo precipitadamente e justo no momento de maior tensão entre as duas amigas. A partir daí, a nova realidade de Maria cria uma situação ao mesmo tempo dramática e divertida, com desfecho surpreendente.

“Unha e Carne” usa a amizade para discutir a importância da solidariedade e do saber ouvir. O ser humano é complicado. Os humores se modificam assim sem mais nem menos. Dependendo do dia e da hora, diante de um pequeno incidente, nossas reações se tornam extremadas e imprevisíveis. Entretanto, neste mundo apressado, de tanta competição e desconfianças, a peça sugere uma fórmula caseira que sempre dá certo no convívio diário: o respeito pelas diferenças, pelo modo de ser e pensar de cada um, porque todos nós temos nossos momentos de cigarra e de formiga, de herói e de vilão, numa lista interminável de personagens apaixonantes e contraditórios.

“Unha e Carne” é, enfim, uma comédia que nos leva a acreditar no entendimento, mesmo entre opostos, através de diálogo aberto e sincero.

Maria falando sobre passagem significativa de sua infância

Eu tinha onze anos de idade. Meu pai saiu. Disse que não ia demorar, mas demorou. Demorou muito. Uma demora de viagem longa, que ficou bem mais longa porque foi uma viagem sem postais, sem cartas, sem notícia de espécie alguma. Uma viagem que eu, meus irmãos e minha mãe queríamos acreditar que era viagem, mas nem sabíamos ao certo se era viagem mesmo. Viagem no sentido próprio que esta palavra tem. Decidimos – eu decidi – que era viagem e pronto. Minha mãe, por orgulho, dizia que era viagem no sentido “desaparecido”, com direito a retrato dele nas caixas de leite, com aquele triste “visto pela última vez no dia tanto de tanto, vestia assim, assim e assim, favor contatar no telefone tal.” Meus irmãos quase todos achavam que era viagem no sentido de “arrumou as malas e foi embora com outra” ou “arrumou outra e foi embora com as malas” – o que dava exatamente no mesmo.

Certa noite, na hora do jantar, para a surpresa de todos – menos minha – meu pai voltou. Ele entrou sem dizer uma só palavra. Estávamos sentados e, pela expressão de minha mãe, sentados deveríamos ficar. E todos o olharam com medo e raiva. Mais medo que raiva. Muito mais medo que raiva. O silêncio se recusava terminantemente a sair da sala. Até que minha mãe comentou: “Para quem só ia até ali e não demorava, devo dizer que você envelheceu um bocado!”. Meu pai riu. Um riso iluminado. Ele sempre achou minha mãe brilhante. E o comentário dela foi brilhante mesmo. E eu a admirei naquela hora. E fiquei ansiosa esperando a resposta dele. O que ele diria? O que faria? Faria? É lógico que faria. A bola estava com ele. Era a vez dele. Todos ainda o olhavam com medo e raiva. Muito mais medo que raiva. E ele sabia disso. E isso lhe dava mais força e autoridade no erro injustificável. Injustificável? Não, nada é injustificável.

Meu pai andava devagar em torno da mesa. Todos ouvíamos os seus passos no chão de madeira. E eu o amei por ele ter parado ali onde parou. Ele parou atrás de mim. Eu não o via no sentido próprio do verbo ver. Mas o via no sentido da minha alma agradecida a Deus pelo retorno dele. Eu sentia o seu cheiro. E eu podia apostar que ele estava de olhos fechados. E minha mãe me confirmou a certeza: “Essa sua mania irônica de fechar os olhos me embrulha o estômago”. Meu pai era um artista perfeito. E neste momento, ele deu sua primeira fala, com verdade de ator veterano, experiente, que sabe tudo do palco: “A julgar pelos olhares, quem me entende aqui é a Maria”. E então ele pôs as suas mãos sobre os meus ombros. E então eu me senti presenteada. E então todos, inclusive minha mãe, me olharam só com raiva – que ali ninguém tinha medo de mim. Então meu pai repetiu com mais ênfase: “Quem me entende aqui é a Maria. E só a ela responderei, se ela quiser perguntar”.

Sem ter me mexido da cadeira, eu resumi minha saudade: “Você pensou na gente?”. Segurei o choro. Eu não queria chorar. Não queria que a mesa confundisse emoção com fraqueza. E aí, aquele pai imenso das mãos pesadas me tirou da cadeira como se eu fosse uma boneca de pano. Me segurando no ar, colocou o meu rosto bem perto do dele, o meu nariz quase na ponta do nariz dele, e olho no olho, agora no sentido próprio de olhar olho no olho, disse com um amor que inundava a sala e os quartos e a casa e as ruas todas: “Pensei. É lógico que pensei. Pensei muito. O tempo todo”. E aí me beijou o rosto e me colocou em pé na cadeira, sempre voltada para ele. “Você estava viajando?”. Ele fez que sim com a cabeça. “Viagem de conhecer países e pessoas?”. Ele tornou a fazer que sim. “Foi bom?”. “Está sendo, Maria. Está sendo muito bom”. Eu entendi logo onde ele queria chegar. Ou melhor, onde ele queria partir. “Você vai viajar de novo?”. “Eu estou aqui de passagem, Maria”. Aí, eu passei minha mão na sua barba de leve e olhando os meus dedos, eu disse: “Você não pode fazer isso. Você é o Pai de Todos. Você não é o dedo Mindinho, nem Seu Vizinho, nem Fura Bolo, nem Mata Piolho. Você é o Pai de Todos, entende? O Pai de Todos.

Eu já não o via. A água nos meus olhos não deixava que eu o visse. Mas ele, com dois dedos feito limpadores de para-brisas, me escorreu a água dos olhos e me fez ver de novo: “Pai de Todos pra você que ainda é menina. Mas na vida, Maria, eu sou apenas o que sou: o dedo médio – este é o nome real do Pai de Todos, o nome adulto: médio, entende?”. “Acho que sim”, eu respondi. Meu pai me olhou de cima a baixo. “Pensando melhor, Maria, você não é mais uma menina. Você é uma mulher. Com apenas onze anos de idade. Já pode perfeitamente tomar conta de uma casa… ou viajar, se preferir.” Então, eu senti a força do meu pai dentro de mim. Ele ali me emancipava, me libertava do conforto de ser apenas filha. Nos demos um forte e demorado abraço.

Depois, meu pai saiu. Da forma como entrou. Em silêncio. A família, órfã, voltou à refeição cotidiana. Seus olhos sempre presos aos pratos e à comida. Mas eu, não sendo órfã, eu tendo pai, mãe e irmãos, preferi viajar a tomar conta de uma casa. Fui para o meu quarto. E com um sentimento de amor e gratidão à vida, comecei a arrumar a minha mala.

Isadora falando sobre a Maria

Eu tenho grande respeito por essa mulher. Eta, mulher forte! Firme. Decidida. Sempre foi assim. Desde menina. Naquela brincadeira “1, 2, 3: quem falar primeiro come todas as porcarias do mundo”, vocês lembram? Ninguém ganhava dela, não. Era imbatível. Nem Cristo fazia ela abrir a boca. A brincadeira acabava, anoitecia, e ela continuava lá, muda, feito uma pedra. Que era pra ter certeza de que todas nós tínhamos comido porcaria, menos ela. E o que é isso? Fibra, personalidade.

Eu conheci a Maria na frente da escola onde ela estudava. Eu estava na rua, olhando todas aquelas meninas, tão vaidosas com seus uniformes. A saia azul-marinho, os sapatinhos pretos, a blusa branca engomada com o emblema do colégio. Todas rindo, conversando, trocando segredos e bilhetinhos nos cadernos. E eu ali, de sandalinha aberta, short e blusa. De férias em pleno ano letivo…

Como seria entrar naquele colégio? Quanta coisa devia acontecer lá dentro! No meio de tanta bagunça, me chamou a atenção uma menina, encostada bem no portão lendo um livro. Séria, compenetrada. Achei que ela devia estar esperando a mãe ou alguém… Fui chegando mais perto. Curiosa. De repente, ela se virou. Eu já estava bem perto. Ela levou um susto. Eu precisava dizer alguma coisa. Fiquei aflita. Dizer o quê? Eu nunca tinha ido pra escola. Aí, no susto, eu perguntei: “A Isadora é da sua turma?”. “Isadora? Não, na minha classe não tem nenhuma Isadora.” “Qual é o seu nome?”, ela quis saber. E eu, meio sem jeito, falei a verdade: “Isadora.” Ela achou graça. E eu também. “Oi, Isadora. Eu sou a Maria.” E eu respondi: “Oi, Maria. Eu sou a Isadora.”

Foi assim que tudo começou. Com o tempo, Dona Antonia, a mãe dela, já me recebia como se fosse uma filha. Foi ela que me ensinou a ler. E depois, mesmo com dificuldade, pagou os meus estudos. Mas o que eu gostava mesmo era de cantar. Sempre tirei nota baixa. Em tudo. Só tirava dez na aula de canto. A Maria nem sabe, mas eu gostava muito de cantar pra ela. Era a única coisa que eu tinha pra dar: a minha voz, a minha música… Pode parecer que a Maria não tá me ouvindo. Mas tá. Lá no fundo, eu sei que tá. Recordar tudo isso faz um imenso bem. Pra nós duas. Faz a gente ficar mais perto uma da outra.

Maria falando sobre Isadora

Nós éramos meninas. Bem meninas. Isadora nunca teve família. Dizia que tinha, mas não tinha. Inventava histórias mirabolantes e fantasiosas sobre o pai e a mãe que não conhecia. Um dia, minha mãe Antonia comprou uma boneca pra eu dar pra ela. Presente de aniversário. Isadora ficou sem saber o que dizer. Chorava feito uma manteiga derretida. Me beijou e abraçou com tanta força que parecia que ia me sufocar. O beijo e o abraço apertado selaram nossa amizade para sempre.

Isadora se tornou uma mulher lindíssima. Extremamente sensual. Chamava a atenção dos homens. E das mulheres, também… Porque Isadora não tinha limites. Nem censura. Era uma força da Natureza que se desencadeava quando menos se esperava. Às vezes, me enlouquecia de raiva. Às vezes, se tornava uma irmã. Às vezes, me despertava paixão. Principalmente, quando cantava. Nos bares e em casas noturnas de péssima frequência. Mas ela não se importava. Dava-se bem com todos: marginais, mafiosos, bêbados, prostitutas e policiais. Sempre via o lado bom de cada um. Aglutinava, seduzia, criava laços de amizade. Dizia que era a única coisa que valia a pena: laços de amizade. Que eu saiba, só teve um desafeto na vida: a Iracema. A amiga entre aspas que nos intrigou na briga que acabou levando ao nosso rompimento. Essa, ela nunca perdoou.

Várias vezes fui à delegacia tirar Isadora de alguma confusão. Nunca o problema era com ela. Era sempre com algum desses amigos, que ela tinha ido defender ou tomar partido. Quando saíamos do xadrez, a frase dela invariavelmente era a mesma: “Valeu, Meritíssima!”. E eu irritada, tinha de repetir: “Eu não sou juíza!”. E ela insistia: “Mas é Meritíssima!”. E eu, no fundo, gostava daquele tratamento meio cafajeste, mas cheio de carinho e respeito. O jeito dela me atraía muito.

Isadora era completamente indiferente a qualquer tipo de moral. Mas tinha uma ética que me desconcertava. Vivia dizendo que existiam apenas quatro pecados capitais: a inveja, a ira, o orgulho e a avareza. Para ela, a gula, a preguiça e a luxúria eram virtudes essenciais que, combinadas, levariam qualquer um ao Paraíso! No meu íntimo, sempre concordei com ela. Mas fazia exatamente o contrário: vivia de dieta, sozinha e trabalhando dia e noite.

Nossa amiga Tininha disse uma vez que Isadora e eu éramos a versão brasileira da cigarra e a formiga. E acrescentava: “Vocês são unha e carne…” É lógico que eu era a unha, e Isadora, a carne!

Ficha Técnica

Autor: Francisco Azevedo
Direção Geral: Francisco Azevedo
Diretor Assistente: Henrique Tavares
Atrizes: Lilia Cabral (Marcia Cabrita) e Denise Del Vecchio
Cenografia: Fernando Mello
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurino: Marilia Carneiro, Karla Monteiro
Preparação Corporal: Doriana Mendes
Fotografia: Silvio Pozatto
Diretor de Cena: Hildo de Assis
Assistente de Direção: Fátima Domingues, Aline Guimarães
Direção de Produção: Sérgio Saboya